A CAIXA LAUSAC

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Em maio de 1995, eu morava em Curitiba, tinha vindo de Cuiabá passar férias com a intenção de ficar, fiquei um mês de férias, muita festa, ilha do mel, amigos e algumas visitas à agências locais, na verdade umas 4 entrevistas, no dia de ir embora o telefone tocou e acabei sendo contratado como diretor de arte de uma dessas agências. Lembro de nesse dia me sentir a pessoa mais feliz do mundo, mas o tempo passa e depois de 10 meses, as coisas começaram a se acomodar e aquilo que me fazia muito feliz começou a desbotar. No dia 22 de maio de 1995 eu estava completando 25 anos, minha mãe uma vez me disse, que era mágico ter 25 anos, de repente você acorda e tudo está diferente, melhor. Ela me disse isso quando tinha 35, acho que estávamos falando sobre maturidade, pois eu era um adolescente bastante problemático, ainda tenho problemas, todo mundo tem problemas, a diferença é que consigo rir deles hoje em dia. O dia do meu aniversário de 25 anos, começou bem pálido, vagabundo e sem graça, estava na agência andando de um lado pro outro meio triste, lembro que a criação dessa agência era na garagem da casa, o pessoal era muito engraçado e geralmente a gente não tinha muita coisa pra fazer a não ser sacanear uns aos outros o dia inteiro entre um job e outro, jobs escassos devo dizer. Era muito bom trabalhar lá, tinha café da manhã, almoço e café da tarde, era uma casa antiga no Centro Cívico, antiga mas bem legal, tinha um quintal gramado, churrasqueira e o melhor a criação era na garagem, criação de garagem, tipo banda de garagem, cheguei até a levar minha guitarra que ficava plugada num três em um dinossáurico no fundo da criação no meio da bagunça. Foram anos dourados e na época eu não percebi (que saco isso!), era meu aniversário, eu era jovem e costumava comemorar sempre com muita festa, só que desta vez estava numa cidade que eu não conhecia ninguém muito bem, não tinha parentes nem amigos de longa data, mas quando se é jovem isso não importa muito, confiamos nas pessoas, damos crédito pra qualquer um. O pessoal da criação me adotou na época, lembro que todos pareciam se importar e gostar muito de mim, apesar de eu ser bem diferente deles, eram todos curitibanos que nunca haviam morado fora, eu de meu lado já havia morado em vários lugares e tinha resolvido ficar longe da minha família, não porque não gostasse deles, mas por um ímpeto de pôr o pé na estrada, de estar só, de ganhar o mundo, de se fuder pra provar algo pra mim mesmo. Eles não entendiam isso direito e confesso que nem eu mesmo entendo, mas talvez pelo fato de eu parecer exótico, me aceitavam. Naquela tarde comentei com dois colegas, sobre a possibilidade de fazer uma festa na agência, eles que me chamavam de “Seven Nights” por conta das minhas proezas boêmias, ficaram muito excitados e me disseram que eu tinha que fazer uma festa sim. Apesar de eu estar bem desanimado, resolvi dar três telefonemas, após isso saímos pra comprar carne e cerveja, contando que viriam umas 10 pessoas no máximo. Lá pelas 21:00, haviam por baixo 50 pessoas na casa, não sei de onde saiu tanta gente e também não pensei que fosse tão popular, uma das vantagens de ser jovem, todo mundo quer estar perto de você. Não bastasse a festa ter sido sensacional, ainda assim aconteceu uma coisa que me marcou bastante aquela noite, de madrugada já, acho que eram 02:00, entrei na garagem departamento de criação e vi uma cena que parecia mais uma fenda espaço tempo direto para os anos 70, direto pra Woodstock, direto para uma reunião Learyana ou coisa que o valha, no chão da sala haviam três grupos de 4 ou 5 pessoas, cada grupo estava sentado no chão em volta de uma folha grande de papel e todos desenhavam juntos, cada um riscando o desenho do outro, continuando o desenho do outro, parecia um jardim de infância, aquilo me comoveu, realmente me comoveu, a festa, as pessoas, tudo, foi uma das noites mais felizes da minha vida, lembrei da minha mãe, acho que naquele momento muita coisa fez sentido, não que eu tivesse entendido a vida ou tivesse sido arrebatado por uma epifania estética, apenas fez sentido naquele momento, foi marcante ok? A festa acabou e acabei jogando fora os desenhos, pois eram um monte de rabiscos. Definitivamente não devia ter feito isso, semanas depois, algumas das pessoas que estavam na festa e haviam desenhado, me perguntaram sobre os desenhos, não tive coragem de dizer que eu havia jogado fora e pus a culpa na assistente de limpeza, lembro que, sempre que eu dizia que não tinha mais os desenhos, quem me perguntava ficava desolado, daí eu percebi, era um monte de rabiscos, mas tinham um significado, tinham um valor, mesmo que sentimental. Anos depois mais precisamente em 1998 já na Faculdade de Artes do Paraná eu precisava de uma idéia para o projeto de conclusão do curso, não tive dúvida, eu deveria trabalhar com arte coletiva, nem que fosse para me redimir e aplacar a culpa de ter jogado fora linhas e pontos significativos para pessoas que em dado momento se importaram em sentar do meu lado nesse trem louco da vida, mas como re-plicar uma experiência que foi única? Uma experiência que havia sido mágica e completamente ao acaso? Eu tería que fazer muitas festas de aniversário e mesmo assim não daría certo. Nessa festa de 25 anos, as pessoas acabaram no chão desenhando meio que sem querer, completamente por acaso e pelo efeito de substâncias ilícitas, a coisa simplesmente aconteceu. Eu tinha um problemão pra resolver, a maioria das pessoas tem vergonha de desenhar, pois param de fazê-lo quando começam a se alfabetizar e o lado esquerdo do cérebro começa a dominar, nesse estágio a criança quer que seu desenho seja o mais próximo da realidade, só que o lado esquerdo do cérebro, prático e sequencial, começa a atrapalhar, enviando conceitos do que é visto pelo olho, exemplo: ao vermos uma cadeira em perspectiva, dependendo do ponto de vista, enxergamos apenas três pernas, mas para o lado dominante do cérebro, o conceito de cadeira possui quatro pernas, isso acaba causando uma confusão na cabeça da criança, pois ela não consegue desenhar aquilo que vê e sim o que o seu cérebro sabe sobre o objeto. Portanto, primeiro problema, como convencer pessoas que não sabem desenhar a fazê-lo, sem sentirem vergonha? A solução mais lógica era isolar essas pessoas do ambiente, quando precisamos fazer algo que não podemos fazer em público, fazemos sozinhos trancados em algum lugar, certo? A solução? Uma caixa, uma caixa que por si só tivesse apelo estético, que suscitasse curiosidade e principalmente que fosse facilmente desmontável e transportável. Ok, parte do problema parecia estar resolvida, eu iria construir uma caixa desmontável, mas como convencer as pessoas a entrarem na caixa? Ainda, como explicar que era pra elas desenharem lá dentro? A solução dessa vez veio através de Pablo Picasso, no início do curso de artes eu frequentava bastante a videoteca da FAP que era comandada pelo Ciro Ridal, lembro que certa vez ele me indicou um filme sobre Picasso, “Le mystère Picasso” (os Mistérios de Picasso em português), no qual podemos ver por trás de um painel enquanto Picasso desenha sem parar do outro lado do mesmo, o que vemos então é somente o rastro do desenho sendo produzido, o efeito é sofisticado apesar da técnica ser bastante simples.

Esse filme acabou me inspirando e resolvendo mais um problema do meu projeto, eu convenceria as pessoas a entrarem na caixa posicionando um telão na parte de fora, junto a caixa, que reproduziria o desenho coletivo que estava sendo produzido em seu interior, da mesma maneira que Henri-Georges Clouzot, fez em Le mystère Picasso. Após muitos testes em casa, tentando alinhar a câmera de vídeo com o telão, a coisa funcionou. Agora eu precisava de um nome para o projeto, considerando que meus objetos de estudo a princípio seriam o acaso e a arte coletiva. Em um desses testes com a câmera e o telão eu escrevi a palavra “CASUAL” no papel, como a câmera ficava posicionada na parte de trás da folha de papel o que aparecia no telão ficava ao contrário, faça o teste, escreva “CASUAL” numa folha de papel vire a folha e olhe contra luz, o que você lerá é a estranha palavra “LAUSAC”, quando vi essa palavra no telão, repeti ela algumas vezes, ela era estranha, séria, pesada mesmo na leveza de sua dicção e parecia nome de filósofo francês, era perfeita, decidi então que o projeto se chamaria CAIXA LAUSAC. Estava tudo funcionando e para minha satisfação, a primeira vez que instalei a caixa – no final de 1998 num shopping da cidade – tudo funcionou como eu esperava, as pessoas entravam na caixa por curiosidade e percebiam que o desenho que estava dentro dela era o mesmo que estava no telão e mais, estava sendo transmitido ao vivo, era tudo que o público precisava: privacidade e narcisismo, a coisa virou uma brincadeira, uma armadilha para capturar desenhos coletivos. De 1998 a 2002 a CAIXA LAUSAC foi exposta mais quatro vezes em locais distintos na cidade de Curitiba, gerando uma coleção de 300 desenhos realizados por um grupo extremamente heterogêneo de mais de 1000 pessoas. Minha produção poética pessoal, foi profundamente afetada por essa experiência, nos anos seguintes experimentei um bloqueio criativo. Sentia que não conseguiria criar nada de novo ou mesmo tão autêntico como esses desenhos, a maioria uma confusão caótica de linhas sem sentido, a criação em estado puro, a negação do ego através de sua afirmação, o acaso agindo de olhos fechados. Busquei incorporar esses desenhos como matéria prima de minha produção sem sucesso. Um caminho sem volta. Esses coletivos, palimpsestos de parede de banheiro, reafirmação do núcleo egoísta de cada um desses desenhadores sem rosto dentro de uma paisagem sem nome, sem autor, me assombram. Saltei no abismo do delírio, chego a pensar que Deus fala por esses desenhos, num código ainda indecifrável. O trabalho de digitalizar e catalogar essa coleção, ao invés de me acalmar, me agita ainda mais, tanto que até agora apenas 10% do trabalho foi feito. A confusão é tanta que mal consegui lançar um olhar científico sobre eles, uma tentativa de interpretação que seja. Lembro de um personagem velho, de uma antiga novela televisiva. Ele ficava a maior parte do tempo remexendo excrementos dentro de uma banheira com uma vassoura. A todos que perguntavam com cara de nojo o que ele estava fazendo, ele respondia: alquimia, isso vai virar ouro um dia.

Coletivo Lausac. Dia 24 de março de 2001 – Memorial do largo da Ordem – Curitiba.

Esse ficou parecendo um Picasso.

Coletivo Lausac. Dia 24 de março de 2001 – Memorial do largo da Ordem – Curitiba.

dia 18 de junho de 1999 – Casa do Estudante Universitário – Curitiba

Esse é um Coletivo Lausac Sintético. Sintético porque sintetiza na superfície da composição uma idéia concreta, um rosto, uma cabeça, uma cena doméstica, entre outros.A figura que parece estar executando o passo final de uma coreofrafia ou prestando reverência, tem o corpo formado por uma cabeça de frente e uma de perfil. Esse tipo de Coletivo é muito interessante pois o seu processo pressupõe uma certa sintonia entre os participantes ou mesmo que algum dos participantes, como acredito ser o que realmente ocorre, em algum momento tome as rédeas da composição. Esse fenômeno é caracterizado pela continuidade, pelo fluxo de uma idéia que vai sendo desviado, redefinido. Quanto mais definida a composição final mais a interferência do ego do participante tende a enfraquecer, limites são necessários e a maioria de nós prefere respeitá-los mesmo em um exercício secreto de liberdade.

Coletivo Lausac. Dia 22 de novembro de 1999 – FAP (Faculdade de Artes de Curitiba)

Coletivo Lausac. Dia 19 de setembro de 2001 – Dom Trajano / Curitiba. A peculiaridade deste coletivo é a impressão de perspectiva no resultado final.

Dia 1º de abril de 2001 – Memorial do Largo da Ordem – Curitiba.

Dia 24 de março de 2001 – Memorial do Largo da Ordem – Curitiba.

Dia 31 de março de 2001 – Memorial do Largo da Ordem – Curitiba.

Dia 29 de março de 2001 – Memorial do Largo da Ordem – Curitiba.

A Caixa Lausac é um projeto de pesquisa em linguagem visual.
Desde 1999 eu venho coletando esses coletivos (Coletivos LAUSAC) através dessa vídeo instalação, que consiste de uma cabine que possuí em seu interior um balcão com tampo de vidro, em cima desse tampo põe-se uma folha de papel e canetas Pilot, para as pessoas que entrarem na caixa desenharem. dentro do balcão existe uma câmera de vídeo apontada para cima, ou seja, apontada para a parte de baixo da folha de papel, essa câmera capta os desenhos sendo feitos e retransmite para um telão que está posicionado fora da cabine. Funciona como uma armadilha para captar desenhos. O telão é como se fosse um chamariz. De que outro modo eu conseguiria convencer pessoas que morrem de vergonha de desenhar a fazê-lo?

Dia 6 de novembro de 1999 – Shopping Crystal – Curitiba. 1ª Instalação da Caixa LAUSAC.

Dia 6 de novembro de 1999 – Shopping Crystal – Curitiba. 1ª Instalação da Caixa LAUSAC

Dia 24 de março de 2001 – Memorial do largo da Ordem – Curitiba.

Coletivo Lausac. Dia 25 de março de 2001 – Memorial do largo da Ordem – Curitiba.

Coletivo realizado por Cassiano Pires e Katia Michelle na madrugada do dia 05 de agosto de 2002.

Coletivo Lausac. Dia 30 de março de 2002 – Memorial do largo da Ordem – Curitiba.

Coletivo Lausac. Dia 10 de dezembro de 1999 – Curitiba.

Coletivo LAUSAC realizado durante o curso de Poéticas Contemporâneas no Ensino da Arte, na Faculdade Tuiuti – Curitiba – PR – 14 de setembro de 2002.

Coletivo LAUSAC – 23 de março de 2001 – Memorial do Largo da Ordem – Festival de Teatro de Curitiba

Coletivo LAUSAC, dia 30 de março de 2001 – Memorial do Largo da Ordem – Festival de Teatro de Curitiba.

Coletivo LAUSAC – 10 de dezembro de 1999 – Ideosphera – CEU (Casa do Estudante Universitário) – Curitiba

Coletivo LAUSAC – 13 de agosto de 2002 – Cassiano, Katia, Ronise, Kako, Marco, Michele e Kaká – casa da Barão de Antonina – Curitiba

Coletivo LAUSAC – 19 de setembro de 2001 – IdeOsphera – Casa do Estudante Universitário (CEU) – Curitiba

Coletivo LAUSAC – 19 de setembro de 2001 – IdeOsphera – Casa do Estudante Universitário (CEU) – Curitiba

Coletivo LAUSAC – 24 de março de 2002 – Memorial do largo da Ordem – Festival de Teatro de Curitiba

Coletivo LAUSAC – 31 de março de 2002 – Memorial do Largo da Ordem – Festival de Teatro de Curitiba

Coletivo LAUSAC – 26 de março de 2002 – Memorial do Largo da Ordem – Festival de Teatro de Curitiba

Coletivo LAUSAC – 19 de setembro de 2001 – Sesc do Portão – Curitiba – PR

Coletivo LAUSAC – 22 de novembro de 1999 – Faculdade de Artes do Paraná (FAP)

A liberdade guia o Império
Acrílica sobre madeira – 130 x 130cm

O coletivo LAUSAC abaixo acabou virando essa pintura que hoje está na parede do meu quarto.

Coletivo LAUSAC – 22 de novembro de 1999 – Faculdade de Artes do Paraná (FAP) – Curitiba – PR

Coletivo LAUSAC – 24 de março de 2001 – Memorial do Largo da Ordem – Festival de Teatro de Curitiba

Coletivo LAUSAC – 26 de março de 2001 – Memorial do Largo da Ordem – Festival de Teatro de Curitiba

Coletivo LAUSAC – 26 de março de 2001 – Memorial do Largo da Ordem – Festival de Teatro de Curitiba

Coletivo LAUSAC – 26 de março de 2001 – Memorial do Largo da Ordem – Festival de Teatro de Curitiba

Coletivo LAUSAC – 26 de março de 2001 – Memorial do Largo da Ordem – Festival de Teatro de Curitiba

Coletivo LAUSAC – 26 de março de 2001 – Memorial do Largo da Ordem – Festival de Teatro de Curitiba.

9 comentários em “A CAIXA LAUSAC

  1. Seven, a tal caixa fez parte do meu imaginário por um bom tempo. Sempre tive curiosidade à respeito nas (poucas) vezes que falamos sobre ela na Visão. Muito legal ter lido a história contada por ti e, ao mesmo tempo, poder visualizar a garagem (lembra do saco de box?), a churrasqueira e você chegando tarde. Acho que nosso único trabalho em conjunto foi o que mais me divertiu na Visão: um bolo feito com as coisas de curitiba, não sei se você lembra. A história que você contou é ótima porque tem o tempero inesquecível das coisas vividas, inclusive as incoerências. É o que nos faz humanos e semelhantes: justamente as nossas diferenças.

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  2. E eu, que fazia parte (a partir de 96) dessa garagem, lembro muito bem desse projeto nascendo. Estou impressionado com a dimensão que ele tomou e a forma fantástica como você explicou (quem disse que as pessoas não querem mais ler hoje em dia?) e documentou. A primeira parte do texto, lobisomem, sinceramente é de arrepiar. Escrito de forma espontânea, sincera e visceral, como tudo o que você faz desde que tive o prazer de te conhecer. Grande abraço.

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    1. Grande Ogrizek! O cara que me ensinou a dormir de olho aberto, sentando de frente pro computador, kkkkkkkkkk. Valew por ter lido o texto, pelo apoio e pelas tardes mais do que engraçadas na garagem da Visão.

      Abração brother!

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